quarta-feira, 20 de outubro de 2010

MISSÃO E VISÃO ORGANIZACIONAL: ORIENTAÇÕES PARA SUA CONCEPÇÃO

Marcelo Antoniazzi Porto

Inúmeras são as organizações brasileiras que vêm, especialmente ao longo desta década, enunciando missões, visões, credos, princípios, valores, etc. como resultado de uma etapa inicial de seus processos de implantação de sistemas de gestão da qualidade.

Entretanto, o impacto positivo e a real importância que tais elementos têm no sucesso de uma organização não é compreendido pela maioria. Muitas percebem apenas o cunho “ideológico” destes elementos, não entendendo o seu reflexo nas sucessivas tomadas de decisão, em todos os níveis, no dia-a-dia de uma organização. Além de poucas compreenderem sua importância, menor ainda é o número de organizações que incorpora tais elementos às suas práticas diárias, assumindo-os como instrumentos orientadores e balizadores das condições de contorno da prática empresarial.

Este artigo não tem a pretensão de responder o que deve ser feito em relação a esta questão, pois sua complexidade exige observação e análise mais apuradas das práticas atuais para que, somente então, possa-se prover algumas recomendações. Entretanto, visto que a própria base conceitual não é homogênea, este artigo aborda dois elementos fundamentais, missão e visão, que por vezes são mal compreendidos e mesmo tomados como sinônimos, trazendo orientações para sua concepção. Apesar de superficiais, esclarecem a diferença entre estes dois elementos, servindo como um primeiro passo na compreensão de seu impacto e sua importância.

Visão é um destino específico, uma imagem de um futuro desejado. [...]

[Missão] é abstrata. [...] [Missão] é “avançar a capacidade do homem para explorar os céus”. Visão é “um homem na lua ao final dos anos 60”. (SENGE, 1990, p. 149)

A missão de uma organização representa a razão de sua existência (AT&T, 1992; COLLINS & HUGE, 1993; JOHNSTON & DANIEL, 1993; SENGE et al., 1994; HUNGER & WHEELEN, 1995; BABICH, 1996; COLLINS & PORRAS, 1996).

Para prover algumas orientações em relação à concepção de uma missão, o autor considera que a mesma deva abranger: 1) o propósito básico da organização (foco no cliente externo); e 2) os valores que a organização pretende agregar a elementos que com ela interagem.

PROPÓSITO BÁSICO
Segundo Hunger & Wheelen (1995), uma missão pode ser definida de forma ampla ou restrita. Ou, usando a idéia de abstração de Hayakawa (1990), uma missão pode assumir alto ou baixo nível de abstração. Uma missão restrita, ou limitada, pode definir claramente o propósito de uma organização, limitando-a, porém, em seu escopo. Uma missão ampla (enunciada em termos mais genéricos) permite um escopo bastante mais abrangente para a organização. Por outro lado, seu maior nível de abstração exige identificação clara do que deve ser enfatizado.

Johnston & Daniel (1993) salientam que a missão não deve ser limitadora. Citam o exemplo da Toyota Motor Corporation que costumava definir, em sua missão, “automóveis” como seu negócio. Agora, tendo expandido consideravelmente sua missão, traz, na definição de seu negócio, “mover pessoas”. Isto lhe permitiu trabalhar com novas áreas de transporte, não se limitando a veículos abastecidos com gasolina, com pneus de borracha, que se movam no solo.

AT&T (1992), Colletti (1995) e Melum & Collett (1995), citando apenas alguns autores que compartilham da mesma idéia, ressaltam a necessidade da organização definir quem são seus clientes externos. Contudo, para que possam ser identificados, a organização necessita primeiro compreender o mercado onde pretende atuar. Para tanto, segmentá-lo é uma boa iniciativa (AT&T, 1992).

Há vários critérios de segmentação do mercado. Cada um abrangendo inúmeras variáveis que podem ser utilizadas, tais como: idade, nacionalidade, classe social, renda, clima, características de personalidade, etc. (CHIROUSE, 1985).

Uma vez estabelecidos tais clientes, que devem representar o foco da organização, esta deve entender as suas necessidades, de modo que possa identificar que valores agregar aos seus clientes através do fornecimento de produto(s) e/ou da prestação de serviço(s). O foco da organização deve estar nos valores que pretende agregar aos seus clientes e não nos produto(s) e/ou serviço(s) que oferece.

AGREGANDO VALOR A OUTROS ELEMENTOS
“Uma missão é um propósito que integra a variedade de papéis que um sistema desempenha” (ACKOFF, 1981, p. 107). Esta definição de Ackoff (1981) contempla o aspecto sistêmico de qualquer organização. Ou seja, uma organização, enquanto sistema deve estabelecer seu propósito abrangendo outros elementos importantes, de modo a garantir que não lhe falte coesão e que o planejamento seja realizado de forma integrada.

Além dos clientes, Ackoff (1981) menciona acionistas, fornecedores, empregados e a comunidade como “partes interessadas” (do inglês, stakeholders) que devem ser contempladas pela missão de uma organização. J. C. Penney, Merck e UPS são exemplos de empresas cujas missões abordam outros elementos além do cliente externo (Jones & Kahaner, 1995).

VISÃO
Conforme ressaltado por Senge (1990), não há uma fórmula para encontrar a visão. Certamente, qualquer receita prescritiva que fosse apresentada não seria a mais adequada para todas as organizações. Portanto, as orientações aqui contempladas focalizam nas características do conteúdo da visão, uma vez que o processo de concepção da mesma é muito particular a cada organização.

Abaixo seguem algumas orientações úteis ao processo de concepção de uma visão:

• A VISÃO DEVE RETRATAR UM ESTADO FUTURO DESEJADO
Considerando sua missão, a organização deve conceber uma visão que retrate um estado futuro desejado capaz de responder fundamentalmente a uma questão: “o que queremos ao longo deste nosso caminho pela missão?”. Esta questão mostra que uma organização pode ter mais de uma visão. O que na realidade ocorre, em organizações visionárias, é uma sucessão de visões de longo prazo ao longo de sua existência.

Exemplo: “Um homem na lua ao final dos anos 60”.

Neste exemplo da NASA, a visão respondeu a outra questão comumente contemplada: “quando queremos...?”. Outro exemplo em que esta segunda questão é respondida: “Tornar-se tão respeitada em 20 anos quanto a Hewlett-Packard é hoje” (enunciada pela Watkins-Johnson em 1996).

Ainda que de forma implícita, a visão da Watkins-Johnson responde a uma terceira e última questão contemplada por inúmeras visões: “onde queremos...?” (sabidamente a Hewlett-Packard é respeitada em nível mundial).

• A VISÃO DEVE SER DE LONGO PRAZO
Collins & Porras (1996) sugerem que a visão contemple um horizonte de tempo de 10 a 30 anos. Collins & Huge (1993) falam em 5, 10 ou 20 anos. Existem organizações com visões superiores a 50 anos e outras que trabalham com não mais do que 3 anos para frente.

Uma visão, para que gere a “energia criativa” mencionada por Senge (1990), deve ser bastante desafiadora, ou seja, romper com o mero estabelecimento de objetivos que se renovem a cada ciclo de planejamento. Quanto maior o gap entre a visão e a realidade atual, maior o desafio que se apresenta. Quanto maior o desafio, mais tempo costuma ser necessário para enfrentá-lo e ser bem sucedido. Por isto, limitar-se a horizontes de tempo curtos geralmente conduz à concepção de visões pouco desafiadoras.

• A VISÃO DEVE TER UMA DESCRIÇÃO CLARA
Collins & Porras (1996) salientam que é essencial “pintar-se” um quadro retratando o que deve parecer a situação futura desejada. Criar-se uma imagem que seja compartilhada por todos em uma organização fortalece o alinhamento. Uma imagem tende a propiciar tangibilidade à visão mais do que as próprias palavras que a definem.

Tanto é assim, que muitas organizações preferem primeiro criar uma imagem do estado futuro desejado e depois transformá-la em palavras.

Exemplificando com a visão de Henry Ford no início deste século:

“Democratizar o automóvel”. Seguem abaixo palavras suas que tentam ilustrar a imagem associada à sua visão:

Construirei um carro a motor para a grande multidão [...]. Ele será tão baixo em preço que nenhum homem, com um bom salário, estará incapacitado de ter um e de desfrutar com sua família a bênção de horas de prazer nos ótimos lugares livres de Deus [...]. Quando tiver terminado, todos estarão aptos a ter um e cada um terá um. O cavalo terá desaparecido de nossas estradas, o automóvel será aceito [...] [e iremos] proporcionar a um grande número de homens emprego com bons ordenados. (Ford apud COLLINS & PORRAS, 1996, p. 74)

• A VISÃO DEVE ESTAR ALINHADA COM OS VALORES CENTRAIS DA ORGANIZAÇÃO
Apesar de não serem abordados neste trabalho, os valores centrais de uma organização, juntamente com a missão, definem sua ideologia básica (COLLINS & PORRAS, 1996).

Os valores centrais de uma organização são aqueles seus princípios essenciais e duradouros. Estes valores não exigem justificativa externa, pois são intrínsecos.

Conseqüentemente, não há um conjunto de valores que possa ser considerado como certo ou errado por um observador externo. Um valor central representa um princípio que sempre é respeitado pela organização ainda que, em alguns momentos, ele possa significar uma desvantagem competitiva.

A importância de um valor central pode ser retratada pelas palavras da equipe gerencial de uma empresa de alta tecnologia mencionada como exemplo no artigo Building Your Company’s Vision de Collins & Porras (1996):

Nós queremos sempre realizar inovação [...] [de vanguarda]. É isto que somos. É muito importante para nós e sempre será. Aconteça o que acontecer. E se nossos mercados atuais não o valorizam, encontraremos outros [...] que o façam. (p. 67)

Outros exemplos que aparecem no artigo supracitado são: honestidade e integridade, lucro - mas lucro de trabalho que beneficie a humanidade, ... (empresa: Merck); vitória - derrotar outros em uma boa disputa, ... (Philip Morris); elevação da cultura japonesa e do status nacional, ser pioneira - não seguir os outros..., ... (Sony); etc.

Pelo exposto acima, é evidente que qualquer visão que não esteja alinhada com os valores centrais da organização está fadada ao insucesso.

• A VISÃO DEVE SER INSPIRADORA E IMPULSIONADORA
O gap entre a visão e a realidade atual deve propiciar a geração de uma energia criativa (SENGE, 1990) suficiente para consecução daquilo que pode parecer insensato ou mesmo absurdo. Novamente, a realização de “um homem na lua ao final dos anos 60” é um excelente exemplo da capacidade criativa do ser humano.

Para ser inspiradora, estimulando a criatividade, e impulsionadora, estimulando ação, uma visão deve ir além da arena competitiva corrente para identificar novas oportunidades que estejam “fora do mapa atual [...]” (BECHTELL, 1995).

A visão de uma organização deve sobreviver aos seus líderes se for realmente inspiradora (COLLINS & PORRAS, 1996).

Indicadores financeiros como foco da visão costumam não gerar o estímulo necessário à criatividade e à ação. O mesmo vale para a liderança em termos de participação no mercado onde a organização atua; se este for o foco da visão, a organização estará se orientando pelo atual cenário competitivo. Estes elementos podem até integrar a imagem que a organização tem de seu estado futuro desejado. Uma visão, para ser genuinamente inspiradora e impulsionadora, deveria responder a pergunta “o que queremos criar?” (SENGE, 1990).

• A VISÃO DEVE PROVER FOCALIZAÇÃO E ALINHAMENTO
Senge (1990) observa que “uma visão compartilhada [por todos] é o primeiro passo para permitir que pessoas que desconfiavam umas das outras comecem a trabalhar juntas. Ela cria uma identidade comum. Na verdade, o sentido compartilhado [...] de propósito, visão e valores [...] estabelece o nível mais básico de comunidade” (p. 208).

Foco e alinhamento estão intimamente ligados. Estas características da visão estão fortemente respaldadas no estabelecimento de um estado futuro desejado que rompa com o status quo, na contínua orientação pela missão e os valores centrais da organização e no claro entendimento da visão, especialmente através de imagens compartilhadas por todos.

• A VISÃO DEVE PRESCINDIR DE MAIORES EXPLICAÇÕES
Uma organização deve ser capaz de comunicar sua visão sem a necessidade de palavras. Por isto, imagens compartilhadas por todos são fundamentais.

Uma visão somente tem poder de alinhamento e impulsionamento, gerando energia criativa organizacional, quando não há necessidade de se gastar horas alinhavando palavras para disseminá-la na organização. Retomando o exemplo da visão da NASA nos anos 60, “um homem na lua ao final dos anos 60” podia ser escrita e dita de inúmeras formas, pois a imagem de um homem na lua era clara para todos, ainda que muitos não acreditassem no sucesso que ocorreria em 1969.

• A VISÃO DEVE CONFRONTAR PADRÕES ATUAIS
O estabelecimento de uma visão exige pensar além das capacidades atuais da organização e de seu ambiente competitivo (COLLINS & PORRAS, 1996).

Ackoff (1981) observa que se pode inovar através do uso de tecnologias que, embora viáveis, não tenham sido usadas da forma como se está concebendo para o estado futuro desejado. Salienta ainda que a implementabilidade da visão é completamente irrelevante, pois não há exigência alguma de que se tenha a capacidade de promover a sua existência.

Lembrando a observação de Senge (1990), não há uma fórmula para encontrar a visão. Entretanto, as orientações aqui apresentadas são aplicáveis a qualquer receita prescritiva que seja adotada para concebê-la.

COMENTÁRIOS FINAIS
Como exposto anteriormente, em se tratando de Brasil, o número crescente de enunciados de missão, visão, princípios, valores, entre outros elementos, é reflexo direto dos esforços para a implantação de sistemas de gestão da qualidade. Entretanto, qualquer organização, independentemente de tamanho ou setor econômico de atuação, quer seja pública ou privada, implantando ou não um sistema da qualidade, necessita compreender qual é sua missão e estabelecer, a partir desta, visões sucessivas que, continuamente, a estimulem a romper com padrões atuais de desempenho.

É importante respeitar a característica temporal da missão, pois somente assim poderá uma organização desenvolver e reforçar de forma mais agressiva a criatividade organizacional, buscando alternativas diversas em termos de produtos e/ou serviços.

Importante: os produtos e serviços representam o veículo através do qual valor é agregado à sociedade; o veículo pode mudar ao longo da trajetória de uma organização mas os valores a serem agregados à sociedade somente mudam a partir do momento que a organização entende ter outra missão. As visões orientam o processo de criação no caminho da missão, estimulando o rompimento do status quo na proporção do gap existente entre a situação atual e o estado futuro desejado.

É fundamental compreender a necessidade de mudança comportamental e disciplina para que a missão seja respeitada e a pressão emocional pertinente a visões desafiadoras seja suportada. Não é trabalho de curto prazo. Portanto, ainda que úteis as orientações contidas neste artigo, em especial para organizações empreendendo esforços iniciais, fazem-se necessários outros trabalhos que contemplem abordagens de mudança comportamental que tenham aplicabilidade no dia-a-dia das organizações brasileiras.