segunda-feira, 27 de junho de 2011

DEMOCRACIA REAL


Vlâdimir Safatle
As atuais manifestações que sacodem a Europa trouxe­ram uma reivindicação que há muito não se ouvia em países como Reino Unido, Espanha, França: democracia real.

Há algo de importante aqui. Pois poderíamos nos pergun­tar o que haveria de fictício na democracia de países que aprendemos a ver como exem­plos de sistemas políticos con­solidados. Por que largas par­celas de sua população com­preendem que há algo no jogo democrático que parece ter se reduzido exatamente à condi­ção de mero jogo?

Talvez tais manifestantes entenderam que a democracia parlamentar é incapaz de im­por limites e de resistir aos in­teresses do sistema financeiro. Ela é incapaz de defender as populações quando os agen­tes financeiros começam a operar, de modo cinicamente claro, a partir dos princípios de um capitalismo de espolia­ção dos recursos públicos.

Não é por outra razão que se ouve, cada vez mais, a afirma­ção de que a alternância de .partidos no poder não implica mais alternativas de modelos de compreensão dos conflitos e políticas sociais. Por isso, o cansaço em relação aos parti­dos tradicionais não é sinal do esgotamento da política. Na verdade, ele é o sintoma mais evidente de uma demanda de política, de uma demanda de politização da economia.

Em momentos assim, deve­mos lembrar que a democra­cia parlamentar não é o último capítulo da democracia efeti­va. A Islândia tem algo a nos ensinar sobre isso.

Um dos primeiros países atingidos pela crise econômi­ca de 2008, a Islândia decidiu que o uso de dinheiro público para indenizar bancos seria objeto de plebiscito. Maneira de recuperar um conceito de­cisivo, mas bem esquecido, da democracia, a saber, a sobera­nia popular. O resultado foi o apoio massivo ao calote.

Mesmo sabendo dos riscos de tal decisão, o povo islandês preferiu realizar um princípio básico da soberania popular: quem paga a orquestra, esco­lhe a música.

Se a conta vai para a popu­lação, é ela quem deve decidir o que fazer, e não um conjunto de tecnocratas que terão seus empregos garantidos nos ban­cos ou de parlamentares cujas campanhas são financiadas por esses bancos. Como disse o presidente islandês, Ólafur Ragnar Grímsson: "A Islândia é uma democracia, não um sistema financeiro".

O interessante é que, com isso, saímos dos impasses da democracia parlamentar para dar um passo decisivo em di­reção a uma democracia ple­biscitaria capaz de institucio­nalizar a manifestação neces­sária da soberania popular.

É tal processo que nos colo­ca nas vias de uma democra­cia real. Ele é a condição pri­meira para sair da crise. Pois a verdadeira questão que tal cri­se nos coloca é política: que re­gime político é este que permi­tiu um descalabro deste tama­nho na calada da noite?
Transcrito da Folha de São Paulo