Nehemias Gueiros Júnior
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se tem falado e escrito a respeito do impacto do advento da rede mundial de
computadores sobre o Direito. O fim da territorialidade, a subversão da
jurisdição e a pulverização dos direitos autorais, são alguns dos problemas
mais imediatos que vêm sendo enfrentados pelos operadores do Direito nestes
tempos digitais. Dentre os aspectos mais importantes da pluralidade de
desdobramentos trazidos à luz com a chegada da Internet, está, sem dúvida, o
download digital de arquivos musicais e audiovisuais, que tanta celeuma causou
desde o célebre caso Napster, na virada do milênio, quando o jovem americano
Shawn Fanning revolucionou o mundo com seu site capaz de realizar a troca de
arquivos pelo sistema P2P (peer-to-peer). Através desse sistema, usuários do
mundo inteiro disponibilizavam músicas uns para os outros, inicialmente sem
necessidade de um servidor central e sem precisar pagar royalties aos titulares
dos direitos autorais, permitindo a qualquer pessoa com um computador baixar
músicas sem pagar um centavo de direitos. O negócio chegou a atrair mais de 60
milhões de usuários ao redor do mundo e o caso foi parar na justiça americana,
que acabou por fechar a empresa, condenando-a pelo não-pagamento de direitos
autorais às grandes gravadoras do mercado, as chamadas majors. Estava lançado o
grande divisor de águas.
Dezenas
de sites similares surgiram, como E-Mule e Kazaa, oferecendo downloads de obras
musicais grátis e até filmes, como o Scour. Recentemente o Napster retornou ao
mercado, agora cobrando pelas músicas, mas não conseguiu mais atrair tantos
usuários como antes. Todavia, a prática do download proliferou e a indústria,
abalada pela queda de 30% nas vendas de CDs e DVDs nos últimos três anos,
adotou medidas severas para restringir a baixa gratuita e passou a estudar a
possibilidade de novas receitas através da cobrança de direitos conexos de
execução pública, que, na opinião de alguns, devem incidir sobre os downloads
de arquivos, principalmente musicais.
Nos
Estados Unidos, desde 1998 que a DIMA (Digital Media Association) entidade sem
fins lucrativos criada para discutir e oferecer soluções para o mundo digital,
contesta a idéia de que os downloads — que já são distribuições e reproduções
licenciadas e sobre os quais se deve pagar royalties – sejam também execuções
públicas. Isto equivaleria a uma espécie de bi-tributação. A baixa de arquivos
embute uma transferência de posse tanto quanto o CD e o DVD e por isso já
determina o pagamento de direitos autorais sobre a comercialização. De olho na
possibilidade de criar uma nova forma de faturar com os direitos autorais
alheios, a ASCAP, sociedade arrecadadora americana, entrou com uma ação na
justiça contra o Yahoo! e a Real Networks, alegando que downloads digitais como
arquivos musicais e ringtones de telefones celulares constituem execuções
públicas, pois “transmitem ou de toda forma comunicam uma performance”. A
pressão que vinham exercendo sobre o mercado dava mostras de que seria sido
bem-sucedida: temerosas de ações judiciais, as empresas do setor aceitaram
pagar fees regulares mesmo não concordando com a teoria jurídica. Esses valores
chegavam a 4% ou mais incidentes sobre o valor da licença. E isso, mesmo depois
de o Escritório de Direitos Autorais americano (U.S. Copyright Office) ter
regulamentado a matéria, atestando que ringtones são apenas distribuições de
conteúdo. A questão foi submetida a uma corte distrital de Nova Iorque, que
derrotou a ASCAP em primeira instância em fevereiro passado.
Na
sentença, a juíza discordou das alegações da entidade e disse que um download
não se qualifica como “uma dança” ou um “ato”, nem está definido no artigo 101
da lei autoral estadunidense, que define uma execução pública como sendo uma
“performance”, um “recital” ou uma “interpretação”. Elaborando na decisão, a
juíza continuou, afirmando que “se não se pode ouvir, não é uma execução
pública” e que” downloads digitais não são contemporaneamente percebidos por um
ouvinte”. Estas definições sintonizam com o senso comum, já que um recital de
Beethoven interpretado por um violinista, assim como o hino nacional americano
tocado por Jimmy Hendrix ao vivo em Woodstock, podem ser ouvidos por uma
audiência, enquanto que uma música baixada através de um arquivo pela Internet “não
pode ser recitada, tocada nem interpretada, é meramente uma transferência de
conteúdo e esta transmissão não pode ser ouvida em nenhum momento entre o
início e o fim da operação”.
Inconformada,
a ASCAP recorreu à instância máxima do Judiciário americano, a Suprema Corte, o
mais alto órgão jurisdicional dos EUA, que, no início desta semana recusou-se a
apreciar a matéria, validando assim a decisão da corte distrital nova-iorquina
e frustrando as pretensões da entidade americana de aumentar sua receita com os
direitos autorais de seus filiados.
Essa
polêmica dos direitos conexos de execução pública, que são os direitos do
espectro autoral cobrados pela comunicação, em locais de frequência coletiva,
de fonogramas musicais, lítero-musicais e peças audiovisuais, também já chegou
ao Brasil. Entre nós, a legislação autoral criou o Ecad — Escritório Central de
Arrecadação e Distribuição, para arrecadar e distribuir esses direitos em todo
o território nacional, e o órgão vem tentando inferir que o ato de “baixar” da
Web um arquivo musical digital, seja através de computadores ou telefones
celulares, configura uma execução pública de fonograma e já vem adotando
agressiva tática judicial para receber os supostos direitos conexos
decorrentes.
Aqui
cabe uma reflexão mais profunda, de forma que se possa compreender melhor a
extensão da legislação autoral existente em relação à nova tecnologia. O
download é, na realidade, uma mera distribuição de obras intelectuais, pois não
configura uma performance pública do conteúdo, limitando-se às reproduções
feitas nas máquinas ou aparelhos telefônicos dos usuários. Esta distribuição é
feita eletronicamente, através da difusão de sons ou de sons e imagens e pode
ser subsumida pelos incisos II, IV V e VI do artigo 5º da lei autoral
brasileira em vigor (lei 9.610/98 ou LDA). Entretanto, o dispositivo que melhor
define a natureza dos downloads, é, sem dúvida, o inciso IV – distribuição: “a
colocação à disposição do público, do original ou cópia de obras literárias,
artísticas ou científicas, interpretações ou execuções fixadas e fonogramas,
mediante a venda, locação ou qualquer outra forma de transferência de
propriedade ou posse”.
Execução
pública significa transmitir ou comunicar uma obra ao público, através de
qualquer meio ou processo, quer os integrantes desse público recebam essa obra
no mesmo lugar ou em locais separados, ao mesmo tempo ou em tempos diferentes.
Alegar que outras pessoas possam estar próximas do computador ou à volta do
aparelho telefônico para enquadrar o download como execução pública é, no
mínimo, pueril. Se assim fosse, o simples ato de audição de CDs e DVDs
implicaria numa execução pública, pois sempre há mais de uma pessoa próxima do
aparelho reprodutor. Se a mera distribuição de conteúdo for considerada uma
execução pública, qual seria a diferença entre a baixa do arquivo digital e o
envio de um CD embalado, do revendedor para o consumidor? Isto seria o mesmo
que considerar que uma execução pública ocorre mesmo em ambientes restritos,
como o recesso doméstico. A indústria musical, de telefonia celular e de
videogames compartilha um raciocínio muito simples com relação a essa
discussão: para poder ser enquadrada como execução pública, a baixa de arquivos
da Internet precisa ser efetivamente percebida por ouvidos e olhos humanos em
locais de frequência coletiva. Se houver a audição ou visualização de qualquer
conteúdo musical ou audiovisual em um logradouro público, então não resta
dúvida de que se trata de uma execução pública, mas baixamos os arquivos na intimidade
dos nossos lares, em nossos telefones móveis ou nas dependências de escritórios
comerciais. A RIAA (Recording Industry Association of America), entidade que
reúne as gravadoras americanas, apóia os serviços digitais de provisão de
conteúdo, que não consideram os downloads uma execução, mas sim uma entrega
(delivery) do arquivo de conteúdo, portanto, uma distribuição. É uma polêmica
muito interessante, especialmente diante da queda crescente nas vendas de
suportes musicais e audiovisuais físicos e o novo e vibrante mercado de
downloading e streaming e, agora, diante da enfática decisão da justiça
americana, ganharão novos aspectos em redor do mundo. Não cremos que o ECAD
quererá “largar o osso”, afinal, já somos mais de 60 milhões de brasileiros
conectados à Internet, este número não para de crescer e a questão ainda não
chegou aos tribunais nacionais para interpretação jurisprudencial.
*Nehemias Gueiros Júnior é
advogado especializado em Direito Autoral, Show Business e Direito da Internet,
professor da Fundação Getúlio Vargas-RJ e FGV-SP e da Escola Superior de
Advocacia – ESA-OAB/RJ e ESA-OABO/SP, consultor de Direito Autoral do ConJur,
membro da Ordem dos Advogados dos Estados Unidos e da Federação Interamericana
dos Advogados em Washington D.C.
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