Frei Fábio Cesar Gomes
O
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título do capítulo oitavo da Regra de Santa
Clara: “Que as irmãs de nada se apropriem, sobre o pedir esmolas e sobre as
irmãs doentes”, anuncia os três temas fundamentais que nele são tratados: a não
apropriação, a esmola e enfermidade das irmãs. Trata-se de temas que estão
profundamente interrelacionados, como tentaremos demonstrar ao logo deste
artigo. Aliás, todos os temas da Regra Clariana estão muito interligados, uma
vez que ela foi redigida como um texto unitário, somente posteriormente divido
em doze capítulos.
De
fato, percebemos uma relação muito forte entre este e o capítulo sexto que nos
falava do privilégio da pobreza e que, segundo a bela expressão de Frei Orlando
Bernardi, representa o “coração de Clara” (cfr. Comunicações, junho 2012,
p.282-283). Nele, Clara convocava todas as irmãs a observar inviolavelmente a
santa pobreza até o fim, não aceitando “nem ter posse ou propriedade nem por
si, nem por pessoa intermediária, e nem coisa alguma que possa com razão ser
chamada de propriedade, exceto aquele tanto de terra requerido pela necessidade
para o bem e o afastamento do mosteiro” (RegCl 6,12-14).
Acreditamos,
porém, que no capítulo oitavo, Clara nos diga alguma coisa a mais a propósito
da sua concepção de pobreza, uma vez que não fala apenas de não ter
propriedades, mas, de não se apropriar de nada: “nem casa, nem lugar, nem coisa
alguma” (RegCl 8,1). De fato, a não apropriação de nada diz respeito a uma
disposição interior de pobreza que, como tal, constitui a condição prévia para
qualquer forma de manifestação da mesma. Nisso consiste aquilo que Clara chama
de altíssima pobreza (cfr. RegCl 8,4), a pobreza de Cristo, pois significa
assumir a mesma atitude Daquele que “não se apegou à Sua igualdade com Deus,
mas, esvaziou-se a si mesmo” (Fl 2,6-7).
Neste
sentido, Clara demonstra estar em grande sintonia com aquilo que Francisco
chama de sine proprio, ou seja, com uma compreensão de pobreza que não se reduz
à não propriedade de alguma coisa, mas, que consiste em libertar o coração de
todo e qualquer tipo de apego, como fica muito evidente em uma das suas
admoestações: “Vive retamente sem nada de próprio aquele servo de Deus que não
se ira nem se perturba por qualquer coisa” (Adm 11,3).
Tal
compreensão de pobreza, por sua vez, apoia-se naquela consciência muito clara
de Francisco de que todo bem pertence fundamentalmente a Deus, “o bem pleno,
todo o bem, o bem total, verdadeiro e sumo bem, o unicamente bom” (RegNB 23,9).
A nós, cabe reconhecer que todos os bens Lhe pertencem e Lhe restituir tudo
pelo exemplo e pelas palavras (cfr. RegNB 17,17; Adm 7,4). E é justamente aqui
que percebemos um nexo interessante do tema da não apropriação com os outros
temas tratados no capítulo oitavo da Regra de Santa Clara: a esmola e o cuidado
das enfermas.
De
fato, se tudo pertence a Deus, então, precisamos receber tudo Dele, dependemos
Dele em tudo. Tal dependência de Deus em tudo, até mesmo para comer,
manifesta-se concretamente através do pedir esmola, ou seja, da prática da
mendicância. Daí entende-se porque a Regra prescreve que as Irmãs, “como
peregrinas e forasteiras neste mundo, servindo ao Senhor na pobreza e na
humildade, mandem pedir esmola confiadamente, e não precisam ficar com
vergonha, porque o Senhor se fez pobre por nós neste mundo” (RegCl 8,2-3). Aqui
é interessante notar que Clara não fala em pedir esmola como Francisco (cfr.
RegB 6,3; RegNB 9,3), mas, em mandar pedir esmola, pois, em virtude da
observância da clausura, tal prática era delegada pelas irmãs a alguns frades,
os chamados esmoleres.
O
mandar pedir esmola, porém, não eximia as Irmãs do trabalho manual que, não por
acaso, foi abordado no capítulo anterior da Regra (cfr. RegCl 7). Deste modo,
podemos dizer que a prática da esmola em Clara não substitui o trabalho manual,
mas, tal como em Francisco, o pressupõe: “Os que não sabem trabalhar aprendam,
não pelo desejo de receber o salário do trabalho, mas por causa do exemplo e
para afastar a ociosidade. E quando não nos for dado o salário, recorramos à
mesa do Senhor, pedindo esmolas de porta em porta” (Test 21-22).
Porém,
a situação privilegiada em que cada irmã pode experimentar a sua dependência
radical de Deus e, portanto, não apropriar-se de nada, é aquela da enfermidade,
ou seja, quando encontra-se enferma, não firme, fragilizada. Nesta situação, a
enferma é convidada a colocar em Deus a segurança (firmeza) da própria vida,
confiando-se aos cuidados das suas irmãs e manifestando-lhes as próprias
necessidades (cfr. RegCl 8,15). Também para as outras irmãs, a enfermidade de
uma delas torna-se ocasião para exercitarem a não apropriação da própria
vontade, cuidando da enferma não de qualquer modo, mas, colocando-se no seu
lugar, servindo-a “como gostariam de ser servidas, se tivessem alguma doença”
(RegCl 8,14).
Nos
nossos Fóruns Provinciais evidenciamos várias das nossas fragilidades pessoais
e institucionais, diante das quais nem sempre temos respostas imediatas e
soluções fáceis. Mais do que nos angustiarmos e perturbarmos por causa delas, a
reflexão de Clara sobre a pobreza como não apropriação parece nos convidar a
renunciarmos a toda e qualquer pretensão de autossuficiência, reconhecendo, em
todas estas situações, a nossa radical necessidade da graça de Deus e a nossa
fundamental dependência uns dos outros.
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